O que é dom? Alguém nasce com dom? O dom existe? Para o filósofo Lucien Sève, não.

Aprendi sobre o que são dons em dois momentos na minha vida. Primeiramente, na criação que tive, em uma família patriarcal e cristã, aprendi que eu, por desenhar e pintar melhor que meus coleguinhas, tinha um dom. E esse dom era algo divino, como um presente que Deus me deu para ganhar a vida (leia-se aqui nas entrelinhas um certo protestantismo, como na “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Max Weber). Pois bem, muitas pessoas acreditam – como eu acreditava – que por ter um dom, você deveria se sentir privilegiado, quase um escolhido com uma missão, e honrar esse dom. Tudo bem pensar assim, mas essa é só uma forma de pensar, dentro de uma abordagem cristã.

DOWNLOAD  Livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo – Max Weber – PDF

E de onde vem essa ideia de que o dom é divino? Bem, vem da Bíblia – de onde mais? A Bíblia é o livro-base a partir do qual se constrói o pensamento cristão. Parece óbvio dizer isso, mas a Bíblia foi escrita por homens – ela não se escreveu sozinha. E estes homens falaram sobre o Espírito Santo, sobre os dons do Espírito Santo. A saber, são sete dons:

  1. O dom da sabedoria
  2. O dom do entendimento
  3. O dom do conselho
  4. O dom da ciência
  5. O dom da piedade
  6. O dom da fortaleza
  7. O dom de temer a Deus

Eu realmente me via como uma criança com um dom de desenho. Essa percepção se acentuou quando eu tinha 12 anos de idade, e ganhei um concurso nacional de uma emissora de televisão. Eu havia prometido a Deus que se eu ganhasse o concurso, iria fazer a graduação em Design (Desenho Industrial), e não em Relações Internacionais (que eu gostaria, como um Plano B). E assim cumpri minha promessa. Cursei Design de Produto na UEMG, de 2007 a 2010. Depois fiz mestrado em Engenharia de Produção na UFMG, e atualmente curso dois doutorados, um em Engenharia de Produção também na UFMG, e outro para cumprir meu Plano B do desejo da alma, no Instituto Internacional de Estudos Sociais, da Universidade Erasmus de Rotterdam.

Foi numa das aulas do doutorado em Engenharia de Produção, com um professor muito querido e famoso na área de Ergonomia, que aprendi sobre o conceito de dom na perspectiva filosófica. Vou explicar, pois essa abordagem de dom deve sair dos muros da universidade, ser traduzida e popularizada.

Para o filósofo marxista francês Lucien Sève, a ideia de dom não existe. A partir daqui, traduzo do espanhol uma das apresentações da aula, feita por algum colega de turmas passadas e sem identificação.

Os dons não existem

Muitas vezes ouvimos dizer:

“Seu filho não é talentoso

“Mulheres ou alguns povos são “incapazes” por natureza”.

“Está escrito no cérebro de uma criança que será bobo ou inteligente, adequado ou inadequado para esta ou aquela atividade intelectual”.

“Reconheça que esta criança está perdendo algo inato, pois a educação falhou completamente”.

Essas expressões todas dão conta da da existência e da crença em dons.

A palavra “dom”…

… é termo muito mais perigoso na medida em que é confortável, popular e que parece não conter nenhuma conseqüência.

“Falta de dons” … é um drama duplo:

  1. Para o educador, é um cheque de impotência, uma confissão de fracasso.
  2. Para os pais significa desolação, a ruína da esperança.

Qual o objetivo dessa pesquisa?

Assim, o objetivo desse trabalho/pesquisa/texto, é:

Demonstrar que a diversidade de habilidades intelectuais não é uma conseqüência fatal da diversidade de dons biológicos e que, embora esses dons biológicos tenham algum impacto no desenvolvimento psíquico, são as condições sociais desse desenvolvimento que decidem tudo.

Assim, a questão não se refere essencialmente a erros pedagógicos individuais, mas, basicamente, a uma sociedade e a uma política.

A crença em “dons” é reforçada por justificativas teóricas tradicionais, em particular por um materialismo de aparência científica que ele acredita poder deduzir sua determinação por herança.

Por sua vez, a crença nos “dons” é a enorme experiência que as falhas na educação proporcionam.

O que é inteligência?

Aqui torna-se necessário esclarecer o significado da palavra “inteligência” como uma certa maneira de fazer alguma coisa, de realizar algumas tarefas, de resolver alguns problemas.

A inteligência é um aspecto da atividade do homem, de modo que não pode ser concebida como uma coisa, uma substância, uma faculdade, mas como um relacionamento; uma relação entre o indivíduo e seu mundo social.

… Não há organismo que possa ser explicado sem o meio.

Nesse caso, percebe-se imediatamente que toda falha de uma criança no curso de sua educação, longe de ser uma indicação da única “falta de dons”, também é uma indicação da tarefa proposta ou imposta do sistema educacional que definiu essa tarefa, do mundo social que sustenta esse sistema educacional.

Por que o fracasso escolar deve ser considerado como o fracasso do aluno, e não como o fracasso da escola, isto é, da sociedade e da política?

Dessa maneira, é questionado o fim que o capitalismo atribui a todo o processo educacional.

Esse objetivo não é proclamar o direito igual de todos “ao máximo desenvolvimento que a personalidade deles permite”, mas, pelo contrário, fornecer, nos limites necessários e no interesse do capital, o mínimo de cultura ao mínimo de pessoas.

Na prática, as crianças chamadas de tolos são vítimas de um regime social quebrado, que, ao mesmo tempo, inflige sérias mutilações intelectuais, ignora suas habilidades,

sem perguntar

como eles reagiriam

em outras condições.

A atividade intelectual não é diretamente determinada por esses dons biológicos, pelas peculiaridades anatômicas e fisiológicas de um cérebro humano.

O cérebro são possibilidades que serão reveladas pela ativação: manobra e interação de ondas de influências nervosas nos vários setores do sistema nervoso. E a determinação disso está em toda a atividade social do indivíduo.

O nível de inteligência de um indivíduo, longe de permanecer constante, está em constante mudança relacionada às condições sociais.

Como poderíamos explicar essas modificações constantes e abrangentes, se imaginarmos que a inteligência está inscrita na anatomia de um órgão concluído aos 7 anos de idade, do qual nem mesmo as células são renovadas por toda a vida?

Contudo, não existem muitos casos de herança de inteligência, exemplos impressionantes de famílias que transmitem de pai para filho tal ou qual aptidão?

Beethoven nos diz que ele confirma a “lei da herança” porque seu pai era músico da corte. Mas não nos dizem nada sobre sua mãe, que era filha de um chef e serva de garçom.

Não seria explicado simplesmente pela maior quantidade de oportunidades que isso representa, pelo treinamento auditivo precoce ou pela escolha da profissão musical no caso de crianças nas condições das sociedades e nos momentos em que o trabalho do músico é transmitido normalmente de pai para filho como qualquer ofício ou comércio liberal?

Em resumo:

Dizer uma criança que não é “dotada” é manter em termos pseudo-científicos que não se sabe o que seria necessário – ou que não se possa fazer nada – para desenvolver sua inteligência.

É, portanto, um álibi útil para uma política escolar baseada no “malthusianismo da inteligência”. Ainda mais, é uma ideologia funcionalmente antidemocrática.

No caso do homem, não é no patrimônio biológico que o progresso das espécies é fixo, mas no patrimônio social (instrumentos de produção, instituições, idioma, cultura, etc.).

Desde o início, toda a vida do indivíduo, em todos os seus aspectos, é marcada por parâmetros biológicos. Isto é evidente. Toda a sua vida é marcada; mas, no entanto, nada é decidido, porque o que decide é sempre no final o desenvolvimento posterior, isto é, a história social.

“A essência humana

não é realmente outra coisa

que o conjunto de relações sociais”.

Pois bem. Voltando à minha história pessoal, em que eu acreditava ter algum dom (pois era o que as pessoas me diziam), eu não via o meu próprio esforço para desenhar bem. Eu era uma criança de sete anos, que acordava mais cedo para assistir na TV Cultura o Programa À Mão Livre. Ele passava super cedo na televisão, entre 5h e 8h da manhã, por aí. E eu ficava aprendendo com o instrutor do programa (Philip Hallawell, grande artista). Além disso, gastava a minha mesada comprando revistas de desenho da Barbie, com papel de seda, e copiava as barbies. Não suficiente, vendo meus colegas meninos desenhando as armaduras dos Cavaleiros dos Zodíaco, eu quis competir com eles, quis desenhar melhor que eles. Então, definitivamente, havia um esforço pessoal, e um meio social que me permitia desenvolver essa habilidade. Desenho é treino, não é dom.

DOWNLOAD Livro À Mão Livre – A linguagem e as técnicas do desenho – Philip Hallawell – PDF

Eu não tenho dom, eu tenho disciplina em desenvolver algumas habilidades. Saber desenhar não é inato, não é um presente divino. E quanto mais se pratica durante anos, mais se torna um hábito. Até que a habilidade fica parecendo ser natural, fica parecendo que é essa ideia de dom.

Confira este post publicado também em: Os dons não existem – Ethical Fashion Brazil

 

Dons divinos, dons humanos, prática de uma atividade, desenvolvimento pessoal.
Dons divinos, dons humanos, prática de uma atividade, desenvolvimento pessoal.